segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Pernambuco e a revolução na luta contra a injustiça climática

 

A fatalidade de maio de 2022 é um marco doloroso na recente História de Pernambuco. Em poucas horas, mais de 200 milímetros de chuva castigaram a Região Metropolitana do Recife, resultando em 133 mortes e mais de 128 mil pessoas desalojadas ou desabrigadas. Tragédias como essa são, muitas vezes, tratadas como “desastres naturais”. Contudo, há um fator que ultrapassa os limites da força da natureza: anos de omissão governamental e ausência de políticas públicas voltadas à mitigação de riscos nas áreas mais vulneráveis. Como tantas outras vezes, foram as populações periféricas – majoritariamente pretas e pobres – que sofreram a maior parte do impacto.

O bairro do Ibura, especificamente no Jardim Monte Verde, foi uma das áreas mais atingidas. Lá, 21 pessoas perderam a vida, em sua maioria soterradas por deslizamentos que poderiam ter sido previstos e prevenidos. Essa tragédia não foi apenas o resultado de chuvas torrenciais. Foi a materialização de um histórico de desigualdades sociais e raciais, desinteresse institucional e falta de ação sistêmica para proteger as populações mais vulneráveis de Pernambuco; em outras palavras, é o que chamamos de racismo ambiental, resultado de um legado de exclusão social e econômica que empurra para áreas de risco a população de comunidades racializadas.

Os dados expressam uma realidade inegável: o impacto climático não é neutro. No Recife, onde 55% da população é preta, esse número aumenta para 59% nas áreas suscetíveis a inundações e atinge 68% em encostas sujeitas a deslizamentos. Esse padrão reflete a “injustiça climática” – a sobreposição de desigualdade social e vulnerabilidade ambiental. A dinâmica não é acidental, mas um subproduto de décadas de negligência e políticas urbanas segregacionistas.

Embora Pernambuco tenha dado passos iniciais na elaboração de uma política climática – como o Plano Estadual de Mudanças Climáticas de 2011 e a criação do Fórum Pernambucano de Mudanças Climáticas em 2008 –, a implementação prática dessas iniciativas foi praticamente inexistente por mais de uma década. O resultado desse abandono ficou evidente não apenas em 2022, mas em uma série de tragédias acumuladas ao longo dos anos, como as enchentes de 2010 e 2020.

Após décadas de ações reativas e improvisos emergenciais, o governo atual de Pernambuco implementou o programa PerifaClima, considerado uma das iniciativas mais inovadoras em adaptação comunitária às mudanças climáticas no Brasil. Lançado em novembro de 2025, durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em Belém, o programa propõe uma abordagem estruturante e participativa que coloca as comunidades periféricas no centro das decisões e ações.

Com um orçamento inicial de R$ 2 milhões, o PerifaClima a princípio pode parecer modesto. Contudo, a precisão de suas iniciativas e a integração entre tecnologia, academia e sociedade civil têm um caráter transformador. O programa se fundamenta em três pilares principais: monitoramento em tempo real, participação comunitária e educação climática.

Entre as ações mais destacadas do programa está a instalação de sensores meteorológicos comunitários em 20 territórios periféricos da Região Metropolitana do Recife. Esses dispositivos, alimentados por energia solar e conectados por redes celulares, permitem o monitoramento das condições climáticas em tempo real. Em vez de permanecerem em laboratórios distantes da realidade, os sensores estão fisicamente presentes nas áreas de risco, sendo geridos por agentes comunitários capacitados.

A inovação não para por aí. Drones capturam imagens de encostas instáveis, enquanto algoritmos de inteligência artificial analisam esses dados para identificar padrões e áreas críticas que necessitam de intervenção imediata. Além disso, a plataforma digital colaborativa desenvolvida pelo programa combina um módulo de monitoramento de desastres com um módulo educacional, promovendo o acesso ao letramento climático e a estratégias de gestão de risco.

Por fim, o desenvolvimento de Planos Comunitários de Redução de Risco permite que as soluções sejam desenhadas pelas próprias comunidades, levando em consideração sua expertise local e articulando-a com o suporte técnico de universidades parceiras, como a UFPE e a UPE. Essa abordagem integrada não apenas fortalece a eficácia das intervenções, mas também promove o empoderamento comunitário.

A principal diferença entre iniciativas prévias e o PerifaClima é que, em vez de priorizar respostas emergenciais, o foco está na prevenção estruturante e permanente. Até 2022, a gestão de riscos em Pernambuco era majoritariamente reativa: os desastres aconteciam, recursos eram mobilizados, e ações paliativas eram implementadas. No entanto, essa lógica não solucionava as causas estruturais do problema.

O PerifaClima quebra esse ciclo vicioso. Ao investir na criação de uma cultura de prevenção e na consolidação de sistemas de monitoramento contínuo, o programa reduz diretamente o número de mortes e prejuízos materiais causados por eventos climáticos extremos. Além disso, promove o fortalecimento socioambiental das comunidades por meio da geração de empregos, acesso à educação climática e valorização do conhecimento local.

O impacto do PerifaClima ultrapassa os limites de Pernambuco. Durante a apresentação na Conferência do Clima, o programa foi reconhecido como modelo para outros Estados brasileiros e até para países do Sul Global que enfrentam desafios semelhantes. A parceria entre o Governo do Estado, academia e organizações sociais, como a Rede GERA, oferece uma articulação inédita que combina alta capacidade técnica com legitimidade territorial.

Pernambuco agora consolida sua posição como referência nacional na condução de políticas climáticas voltadas para a redução de desigualdades socioambientais. O programa simboliza a construção de um novo modelo de governança territorial, em que a tecnologia é aliada da justiça social e em que as políticas públicas são desenhadas com as pessoas, e não apenas para elas.

A tragédia de 2022 foi um doloroso ponto de inflexão que expôs a fragilidade da gestão climática de Pernambuco. No entanto, as iniciativas implementadas a partir de 2023, especialmente o PerifaClima, marcam um divisor de águas. Mais do que prevenir desastres, o programa redefine o papel das periferias, promovendo sua centralidade nas decisões que moldam seu destino. Ainda há desafios a enfrentar, mas o caminho está sendo traçado com bases sólidas: participação, educação e tecnologia. Pernambuco demonstra que prevenir não é apenas mais eficiente do que remediar – é imperativo para um futuro justo e sustentável.

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