A maioria dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) chegou a um consenso nos bastidores sobre a necessidade de julgar nos próximos meses uma ação que trata do Marco Civil da Internet, a fim de responsabilizar as redes sociais que permitirem a difusão de ataques à democracia.
Em conversas reservadas, os ministros afirmam que, caso o Congresso não aprove o projeto de lei 2630, conhecido como PL das Fake News, o Supremo vai se pronunciar. E, mesmo que seja aprovado, se o regime de responsabilidade das big techs estiver muito frouxo no texto, haverá modulação por meio de decisão do tribunal. Na visão de ministros, o pior dos mundos é continuar sem regulação.
O movimento para pressionar o Congresso a aprovar o PL ganhou força na quinta-feira (4), quando o ministro Dias Toffoli liberou para ser pautado um recurso extraordinário que discute o artigo 19 do Marco Civil.
O Marco Civil, de 2014, é a principal lei que regula a internet no Brasil e determina que as plataformas só podem ser responsabilizadas civilmente por conteúdos de terceiros se não cumprirem ordens judiciais de remoção.
No recurso relatado por Toffoli, uma mulher pediu ao Facebook a remoção de um perfil falso que fingia ser ela e ofendia várias pessoas. O Facebook se recusou a agir. Ela pediu a derrubada do perfil e indenização por danos morais.
Uma decisão teria repercussão geral e poderia abrir um precedente para responsabilizar civilmente as plataformas por não retirar conteúdo antes de haver ordem judicial.
Toffoli tomou a decisão de liberar a ação na quinta-feira (5), dois dias depois de o relator do PL das Fake News, deputado Orlando Silva (PC do B-SP), ter pedido adiamento da votação do projeto, após constatar que não havia apoio suficiente na Câmara. O adiamento veio após uma campanha intensa das big techs contra o projeto e resistência da bancada evangélica.
O jogo pesado das plataformas desencadeou reações drásticas do governo Lula (PT), que acionou o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e a Secretaria Nacional do Consumidor contra o Google.
O ministro Alexandre de Moraes convocou os presidentes das empresas para depor na PF e incluiu a ofensiva do Google contra o PL 2630 no inquérito das fake news. Em sua decisão, na terça-feira (2), Moraes deixou diversas indicações sobre seu potencial voto em relação à responsabilização das plataformas.
“É urgente, razoável e necessária a definição –LEGISLATIVA e/ou JUDICIAL–, dos termos e limites da responsabilidade solidária civil e administrativa das empresas; bem como de eventual responsabilidade penal dos responsáveis por sua administração”, disse Moraes, além de falar em “necessidade de imediata regulação da responsabilidade civil e administrativa dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada”.
Quatro integrantes do Supremo afirmaram à Folha, sob reserva, que há um consenso no tribunal sobre o tema e é necessário julgar o caso até o meio do ano.
Um deles compara o julgamento do recurso extraordinário a decisões do ministro Alexandre de Moraes em investigações contra acusados de trabalhar pelo rompimento da democracia no país.
Em praticamente todos os casos, oito ministros da corte se alinham e formam maioria para derrotar os dois indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Kassio Nunes Marques e André Mendonça, que costumam se opor aos demais.
Há ainda um outro recurso, relatado pelo ministro Luiz Fux, que trata sobre o mesmo tema e pode também entrar na pauta. Na ação, uma professora pediu que o Orkut (que foi comprado pelo Google) tirasse do ar uma comunidade que tinha críticas e ofensas a ela. Ela não foi atendida, e pede ao Google, além da remoção, indenização por danos morais.
O entendimento majoritário no STF é que é necessário aperfeiçoar o dispositivo legal que exime as plataformas de responsabilidade e exigir uma moderação de conteúdo mais dura.
Hoje, o Marco Civil estabelece que apenas nos casos de imagens de nudez não consentida (revenge porn) as empresas podem ser responsabilizadas mesmo antes de decisão judicial, bastando uma notificação de usuário.
Ricardo Campos, docente da Universidade Goethe em Frankfurt, diz acreditar que o STF colocaria obrigações adicionais ao artigo 19 do Marco Civil em decisão do recurso extraordinário —por exemplo, “notificação e ação”, a exemplo da legislação europeia Diretiva de E-Commerce, em vigor desde o ano 2000.
Se a empresa foi notificada extrajudicialmente por um usuário ou autoridade, ela precisa analisar o conteúdo e decidir se ele viola ou não a lei e se precisa ser removido. Se a empresa, após notificação extrajudicial, achar que não cabe remoção do conteúdo, e o Judiciário julgar posteriormente o contrário, a plataforma pode ser punida (por exemplo, em uma ação de danos morais, como a que é analisada no STF).
Na visão de alguns ministros, a “notificação e ação” deveria valer para casos de conteúdo que viola a Lei do Estado Democrático de Direito, terrorismo e incitação a crimes.
Alguns, como Alexandre de Moraes, fazem um paralelo com publicações relativas à pornografia infantil, que são excluídas automaticamente pelas empresas, e entendem que o mesmo tem de ocorrer com ataques à democracia.
O relator do PL das Fake News manifestou insatisfação com a possibilidade de o STF se antecipar ao Congresso no tema. “Não desisti! Ainda batalho para convencer meus colegas que devemos cumprir nosso papel e não abrir caminho para o ativismo judicial”, disse Orlando Silva à Folha.
Mas interlocutores tanto de Orlando quanto do presidente da Câmara, Artur Lira (PP-AL), indicam que o gesto de Toffoli, neste momento, pode acelerar a tramitação na Câmara e, caso não haja votação, uma decisão do Supremo criaria bases para legislação.
“Me parece natural que o Supremo decida sobre os recursos extraordinários que lá estão, na medida em que o Parlamento não adeque o regime de responsabilidades das plataformas digitais a necessidades atuais”, diz Orlando.
Ao mesmo tempo, com a decisão de Toffoli, integrantes da sociedade civil, da Frente Digital e das plataformas começam a se mobilizar para evitar o que consideram um mal maior —no caso, uma decisão do STF, que provavelmente seria bem mais drástica e abrangente do que o projeto de lei.
Em nota nesta sexta-feira (5), o Comitê Gestor da Internet manifestou apoio ao PL 2630, dizendo “estar de acordo com a flexibilização excepcional do regime de responsabilidade acionada pelo mecanismo de protocolo de segurança, previsto no artigo 12 do referido substitutivo, quando for constatado que as plataformas não atuaram de forma diligente para conter a disseminação de conteúdos tipificados como crimes, nos termos do artigo 11”.
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